segunda-feira, 29 de março de 2010

Parte I


Abre o portão de ferro. Estava somente encostado. O metal que tem oferecido resistência às décadas, agora murmura tão só queixas de um leve ruído. Atravessa sem peso, quase vaga para dentro. Pisa cuidadosamente no cimento destratado ao léu das intempéries destoando cores cinza sobre cinzas, concreto rude soterra restos de pó e sobras, luz e sombra definindo entre os túmulos um pequeno labirinto sem muros. Ele caminha sem medo onde o medo dir-se-ia em muitos tempos, reina absoluto, caminha entre a morte e as flores de plásticos.



Uma flor natural encontrou abrigo sob a sombra de uma lápide, seu orvalho reflete uma luz pálida ao fundo da fileira seqüencial de túmulos e, oferece, por puro capricho mesmo, uma beleza comedida, dessas que somente os poetas flagram, movidos pela incansável busca de se emocionarem. Ele continua tomando as precauções exigidas pelas doutrinas universais, respeitando os restos mortais e desviando os passos das estruturas de cimento para lançar cada vez mais seus sentidos aguçados àquela flor que desde um canto insiste em iluminar.



Ele estava certo, uma experiência não vivida pode ser anunciação de uma intuição legítima, seria a aproximação àquela beleza isolada o caminho mais curto para suas emoções mais profundas. Por que a terra que a abrigava a flor e o fertilizante que a nutria eram matérias de pós-vida, desse modo traziam à vida, o que antes era resto, mas antes ainda: vida.



Sentiu imediatamente uma tristeza derramar por seus poros, apertava seu coração e num pranto mudo segurou-se ao próprio corpo como se o mundo fosse ejetá-lo dali. O vento rasgando nuvens negras, som de sopro devolvendo à terra uma semente que cai para brotar de novo, de novo nova refega, outra nuvem nova semente, irremediável ciclo, irremediavelmente único. Por baixo dos pés uma morte vivia em todas as conexões derivadas dos vermes à terra, criaturas invisíveis e vontades Terrestres impulsionavam jorros de potência e existência.



Então, ele fechou forte o corpo com um sinal da cruz e lembrou:



“Fui um cara bacana, estava de certa forma fora das redes sociais, e não o sabia. Descia a rua bêbado, era de manhã, primeiros raios de sol para os últimos passos da noite. Na porta do bar, fechado, uma galera de mendigos bebia cachaça e dormia sobre papelões pardos e incômodos. Me aproximei, falávamos a mesma língua ébria, vazia de significados, mas cheia de significantes sorrisos. Perguntei se queriam comer algo. Estávamos na rua de casa, fui até lá, peguei a caixa de pizza da noite anterior e voltei ao bar, ainda fechado. Me sentei no papelão, comemos e bebemos. Entre eles estavam o Paulinho, o Sentado, o Patrício, o Ciro e o João. Posso ver com clareza o rosto de cada um deles. O jeito humilde, o olhar de criança do Paulinho, oposto ao olhar de vidro do Patrício que por detrás de um sorriso lançava desconfiado uma silenciosa pergunta: ‘o que é que esse boy tá fazendo aqui?’. Tinha aquele olho fixo de vidro, medalha de seus dias na cadeia, eu nunca soube bem, mas parece ter sido uma facada, nunca entendi bem, o Patrício era incapaz de um gesto agressivo: ‘Ooooh Patrício!!! Tudo bem graças a deus!?! E a família tudo bem graças a deus?!?! Vai passar por aqui depois Patrício?!!’ dizia religiosamente... engraçado por que perguntava se ia passar de novo, sabia que era inevitável o caminho pra casa”.

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