
Ficou ali parado, feito anjo de mármore que, aliás, aquele cemitério não tinha. Desafiava a vertigem abalada pela sua própria estatura, padecendo de uma claustrofobia ao céu aberto. Ficou ali refazendo na memória os diálogos e as aventuras, rejuvenescendo sua força com a força daquela juventude, daqueles tempos sem máculas, nem ódios, tão diferentes do amargo sabor da maturidade, das cobranças exigidas a cada passo dado, a cada gota suada o clamor pelo trabalho, o trabalho em amplidão absoluta: pedra de lápide, paralelepípedo, runas, tudo o que não é cosmos, é trabalho... Depois, tantas vezes só, caoticamente só... Amara demais, mas jamais soubera como o amor funcionava, jogo de alicates e seringas, cortes cirúrgicos na alma... e depois, tantas vezes só, tão somente só. Restava-lhe a memória, velho cão de suas mágoas, engrenagem intacta no motor mole de sua história. Então recorreu, uma vez mais à sua memória (ou à lembrança quase certa do que tinha
“Assim como o Patrício, estava na rua de casa, religiosamente também, o João. O João Paraíba ou João Coruja. Além de filósofo do asfalto, autor de várias frases gravadas nos cimentos da urbe, cuidava dos carros dos pacientes do hospital, correndo de uma calçada a outra aos gritos: ‘pode ficar sossegado, doutor’. Conseguia um troco ainda com a venda direta de seu livrinho de pensamentos (‘A era do incenso - a luta pela sobrevivência – rico pela graça de deus’) aos clientes, donos dos carros. Na correria do dia a dia o sustento necessário para viver uma vida já sem vida e mesmo esta, não durou muito...
Noite qualquer, no caminho de sempre, no bar já citado, sentados num degrau sob aquelas mesmas telhas da entrada, o Paraíba conversava com uma ruivinha, cena de sonhos. Com o pretexto de oferecer um cigarro fui até eles. Estava escuro, não decifrava bem os traços dela, mas repousando a cabeça sobre uma mala, consegui advertir uma lágrima, ela chorava. A importância de conhecer seu rosto se estendia na mesma medida em que o escuro a cobria de um enigma indecifrável, a cena toda provocava os sentidos e agitava minha curiosidade: O João posicionado na invisibilidade social de cada dia, conversando com uma garota de malas feitas, feitas de apoio para a pesada tristeza de seu semblante, cabelos ruivos a escondia e escorriam até o chão. Dei alguns passos e mais de perto vi, vi e era linda... nesse instante, por alguma razão compreendi que seria uma eterna repetição aquele encontro. Sensação, sem razão, de que já nos conhecíamos, talvez em um universo diferente, anterior, outro, talvez em minha fantasia passada sempre a tivesse no tempo presente. Do céu a lua é inquestionável, tal como nossas vidas que num destino comum davam voltas atemporais às margens de um horizonte qualquer até a fatalidade do encontro, e como disse antes, seria tal encontro: eterno”.
Entardece, seus olhos como morcegos nas sombras pousam, vôo leve sobre tumbas, fotos, nomes e datas fundidos nas pedras, sepultando na terra a efemeridade entre o ser e o não ser nada. Paulinho, Patrício, Sentado, Ciro, João, mortos... e a vida de que lhes valeu? E a reverberação da voz de cada um, quanto tempo realmente se propagou no eco desenfreado, acidentado, cruel dos dias, dos anos, da vida mesma? Resistência tamanha, tipo de vingança preparada para gritar contra a resignação, uma submissão paga com sangue e que diferença fizeram? Que diferença fazemos nós? Quão diferente somos da existência quase muda deles?

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